Reflexões

Força viva da literatura


Como será o odor dos elefantes após a chuva? Ou o cheiro das cinzas de sândalo que se resfriam no braseiro? Até hoje não sei dizer, mas depois de ler algumas descrições como essas, na primeira página de um livro chamado As cidades invisíveis, de Italo Calvino, passei um bom tempo imaginando, tentando sentir esses estranhos cheiros que não fazem parte do meu cotidiano. Eles existiram durante a leitura por meio da imaginação.

Imaginar, sentir e estranhar. Talvez esses sejam os três fenômenos que acontecem quando lemos um texto literário que instiga, aguça e amplia nossa percepção. No caso desse livro, que narra as cidades visitadas por Marco Pólo e suas conversas com o Imperador dos Tártaros, Kublai Khan, adentramos em várias cidades, percorremos universos estranhos que, por meio da linguagem, sugerem inúmeras sensações e descobertas e, muitas vezes, numa leitura mais atenta, nos remetem a nós mesmos, à convivência com o outro e nossa condição existencial. Essas foram algumas das percepções que tive ao ler o livro, além de outras que são indizíveis e que fizeram parte de uma experiência única.

É interessante pensar que, ao ler um texto que possua qualidade literária, é desencadeado um processo no qual o leitor é estimulado em sua sensibilidade, em seu intelecto e em sua memória. Isso porque a palavra dentro de um texto ganha um poder e uma ação diferentes da forma como a utilizamos em nosso dia-a-dia. Nesse ponto, podemos dizer que, em muitos momentos, o texto nos leva a um estranhamento e a uma abertura para a experimentação e para o risco da descoberta.

Descobrir, por exemplo, uma “conversa de cristal”, na fala de um personagem de Milton Hatoum no final do livro Relato de um certo Oriente, abre possibilidades de significados múltiplos. O que seria, afinal, uma conversa de cristal? Uma forma nova de dizer que há um assunto delicado a ser tratado, ou transparente, frágil etc. Quantas vezes, na vida, nos deparamos com assuntos delicados. Após a leitura desse texto, e dessa imagem, muitas conversas, para mim, ganharam um novo adjetivo: de cristal... A literatura está sempre surpreendendo; os autores não buscam apenas dizer algo, mas, sim “como” dizer esse algo. E dessa maneira, criam e constroem os mais diferentes universos dentro da sua língua, que é a matéria utilizada para o fazer dessa arte. Como diria Ezra Pound: “Literatura é linguagem carregada de significado”.

Talvez no coração da arte literária esteja uma força, uma presença que instiga o leitor a interagir com a língua de uma nova forma e, quem sabe, com a realidade dinâmica em que está inserido. Novos raciocínios surgem por meio da leitura de um texto, abrindo caminhos inusitados que jamais havíamos percorrido. E só isso já é uma grande aventura. Trajetos que, às vezes, um simples inseto nos remete para longe, como na descrição instigante que li num livro chamado O cavalo perdido e outras histórias, do autor uruguaio Felisberto Hernández: “(...) Agora passaram uns instantes em que a imaginação, como um inseto noturno, saiu da sala para recordar os gostos do verão e voou distâncias que nem a vertigem nem a noite conhecem. Mas a imaginação tão pouco sabe quem é a noite, quem dentro dela escolhe lugares da paisagem, onde um cavador revolve a terra da memória e a semeia de novo. (...)”

Esses mundos imaginários, construídos pela linguagem literária, conduzem, ensinam e revelam ao homem seu potencial de idealizar e materializar uma nova realidade.